(Texto lido no lançamento do livro "As Madames" de autoria da Zukiswa Wanner)
À primeira vista, As Madames (ou As donas-de-casa) parece um romance trágico-comédia. E isto por contar a história de três mulheres modernas – as super women – da classe média (com formação e um emprego bem renumerado e, talvez, ainda pagando ao banco a letra mensal da sua casa de dois pisos com o marido) que lutam para terem uma família “normal” numa sociedade nova. Trata-se de uma sociedade do pós-apartheid, sobre a qual Mandela sonhava que todos, numa nação arco-íris, seriam iguais, na qual “cada um seria julgado pelos seus actos e não pela cor da sua pele e nem pelo sexo ou etnia”.
Na verdade, o romance de Wanner quer imbricar no dia-a-dia destas três super mulheres o quão profundas foram as divisões entre raças, classes, privilégios e valores na sociedade que pretendiam deixar para trás. E, por via disso, o romance mostra o quão difícil é a construção de uma sociedade reconciliada com o seu passado, após o momento mágico do Madiba. Por outras palavras, estamos perante um romance que trata, muitas vezes, de uma forma humorada o Ser (racista, família com problemas de infidelidades, aparentar solidariedade com os pobres, etc.) e de uma forma trágica o Parecer (não racista, uma família normal, ser solidárias com os pobres, etc.).
Para dar um pouco de humor e emprestar alguma leveza de espírito, este romance trata de duas perspectivas de uma nova sociedade a construir e que, por isso, surpreende aos seus habitantes femininos da classe média: Primeiro o que eu chamaria por dificuldades das negras se tornarem madams enquanto tratamento reservado para brancas; e, segundo, dificuldades das “verdadeiras” madams se tornarem MaPeter, como normalmente as empregadas negras tratam as suas ‘senhoras’ negras, neste caso significa Mãe de Peter.
Por isso, localizo o coração deste livro na briga entre Thandi, no papel de narradora do livro, com a Lauren, sua vizinha branca do “outro lado do muro” e a Nosizwa, amiga negra de ambas, mas que andou a estudar na diáspora com a Thandi.
Pois, tudo começa quando Thandi, uma negra cujos pais estiveram no braço armado do ANC, Unkhondo wa Sizwe portanto, decidiu contratar uma empregada branca. “Mas afinal o que se passa, Thandi?” (….) “Porquê alegas ignorância quando sabes exactamente o que eu quero dizer? Porque não me disseste que procuravas alguém para te ajudar em casa, quando já todos sabiam? Pensei que éramos amigas” – é a Lauren a dirigir-se para a Thandi. Esta retorquiu: “Desculpa…não sabia que te tinha de consultar acerca da mais pequena mudança na minha vida, incluindo o facto de estar a arranjar uma ajuda doméstica. (….) será que o salário da minha empregada sai dos teus estimados bolsos académicos? ”
E o pano do racismo escondido caiu com a seguinte frase da Lauren: “Quer dizer, (…), se me tivesses dito que pensavas a sério em arranjar uma empregada, eu podia ter pedido à Rosie (na verdade MaRosie, empregada negra da Lauren) para perguntar à irmã…”. Interpretando: a Lauren, uma branca, não via com bons olhos estar na casa da amiga negra que tem uma empregada branca.
E a resposta quente veio da reacção amiga negra Nosizwe: “afinal o problema é o facto de quereres ajudar a irmã da Rosie? Ou é o facto de a Thandi ter uma empregada e não te falar disso? Ou ainda, o facto de ela ter uma empregada branca que ofende o teu sentido de decência e a tua ideia sobre a ordem das coisas?”
E a Lauren contra-ataca: “Tens sempre de meter raça em tudo. Não me interessa de que raça é a empregada de ninguém, mas se a Thandi me tivesse dito que havia uma senhora na casa da reabilitação (Eu não vos disse ainda que a Thandi fazia trabalho voluntário numa casa social de recuperação a ex-presidiárias, de onde solicitou a sua empregada branca, a Marita) que precisava de ajuda, eu teria tentado arranjar-lhe um emprego como telefonista na Wits ou qualquer coisa assim.”
Agora sim, a Nosizwe ficou verdadeiramente ofendida. Vejam a resposta: “Empregá-la como telefonista? Então, porquê não fazes isso pela irmã na Rosie? Será preta demais para fazer-se de ‘Senhora’ e atender o telefone?” E daqui para frente podem imaginar.
Apesar de, neste caso, concentrar-se na questão racial – o que Apiah classificou por racialismo n’A Casa do meu Pai – este romance de Zukiswa Wanner trata das consequências do que considero ter sido a maior e mais bem organizada revolução que cruza o século vinte todo, nomeadamente a revolução feminista. Esta “revolução” foi tudo. Retirou a mulher da cozinha (todavia sem dela sair) para o espaço público, como sejam do poder, do direito de eleger e de ser eleita, da educação e ciência, de emprego, das artes, militar, polícia e vários outros que podemos imaginar. Porque esta mulher não saiu (e nem deixou que assim fosse) do seu posto de trabalho caseiro, a cozinha, então surgiu o fenómeno super woman. “A triste realidade na África de Sul é que a minha ‘mulheridade’ ainda é definida pelo quão bem eu sei cozinhar e limpar!” – desabafa a narradora Thandi, a dado passo.
Visitantes por parte de amigos e familiares, particularmente da família do marido, e ainda mais particularmente a visita da sogra, que encontrem o homem-da-casa a limpar ou a cozinhar, podem pensar que se trata de wasso-wasso que a mulher aplicou ao marido. Então a mulher trabalhadora, directora de qualquer empresa ou serviços governamentais, empresária, não importa qual estatuto, função e emprego que ela tenha, ela é obrigada a vestir a sua capa de super woman. E isso mesmo tendo uma ‘secretária particular’ em casa: “E eu a pensar que o estatuto de ser madam seria fácil” – queixa-se a Thandi .
Mas o livro não trata apenas do racismo pós-apartheid. Encontramos nele outros profundos problemas das sociedades modernas tais como egoísmo-solidariedade, traição-perdão, infidelidade-vingança (a vingança da Thandi ao seu marido-traidor, o Mandla), trabalho-família, tradição-modernidade. No livro trata-se ainda do supérfluo (como a moda, compras desnecessárias, cilindragem de carros, drinks – deslumbramentos próprios de uma classe média nova que, por ter tido uma infância pobre, não se habitua de estar na posse de quinquilharias almejadas então. Também não me passou despercebido o debate em volta do social tax , próprio de uma classe média africana angustiada.
Por exemplo, no nosso caso, apesar de termos nascido na Mafalala, na Munhava, no Musseke, no Soweto, etc., por estarmos a viver na cidade-cimento e nas zonas-nobre e sendo nós mesmos produtos de uma rápida ascensão social ainda-em-vida, ainda assim consideramos “aquela gente” que vive nestes bairros, como potencialmente violentas, enfim ladrões. Por isso, quando passamos por ele, fechamos instintivamente os vidros do carro, seguramos com força a bolsa que levamos, olhamos insistentemente em volta a prevermos qualquer ataque em eminência… tornamo-nos nós mesmos aporófobos, para falar com a filósofa espanhola Adela Cortina no livro Aporofobia: El Rechazo de los Pobres. Estes outros problemas são consequência de uma sociedade neoliberal-capitalista onde a cultura de valores humanistas se encontra em plena decadência, sendo substituídos pelo quase único valor que parece perdurar – o do dinheiro.
O que você faz, quando você, que nasceu numa classe social de todas as carências e, de repente, se vê embrulhado numa nova sociedade de fascínio pelo material, pelo efêmero, pela moda, pelo fast food, pelos carros de alta-cilindragem, pelos estates ou condomínios com guardas privados e electrical fence? Ou seja, quando és apanhado no meio de uma sociedade em que tudo parece inalcançável e em fuga, isto é, ninguém parece ter tempo para te esperar cresceres e teres valores, princípios, ou uma utopia sequer que te orientem. Neste sentido, o romance Madams da Zukiswa Wanner tem o estatuto de Things fall apart de Chinua Achebe.
Achebe conta como os habitantes da Umuofia – uma aldeia nigeriana imaginada pelo autor dentro de uma sociedade tradicional em perecimento – vão contemplando, impávidos, a nova sociedade bárbara, ironicamente denominada “moderna”, que vai impondo-se, primeiro por via de missionários; e, segundo, pela via do “direito” colonial segregacionista: cada passo novo em direcção a esta nova sociedade, vai minguando a vida activa e a liberdade de agir dos habitantes da aldeia segundo os seus próprios deuses e leis morais.
Depois de ter lido e fechado o livro As Madames da Autora Zukiswa Wanner, recordei-me deste maravilhoso discurso fúnebre em homenagem a Ezedu contido no romance Things fall Apart de Achebe:
“Ezedu (…), se tivesses sido pobre na tua vida passada, eu te pediria que fosses rica quando de novo voltasses. Mas foste rica. Se tivesses sido covarde, eu te pediria que retornasses corajoso. Mas foste uma guerreira determinada. Se tivesses morrido jovem, eu te pediria que obtivesses mais vida. Mas viveste muito. Por tudo isso, eu te pedirei que regresses como antes vieste. Se a tua morte foi natural, vai em paz. Mas se foi causada por um homem, não permitas a esse homem um só momento de sossego”.
Com base neste discurso, bem poderíamos perguntar, se a sociedade dita tradicional está a morrer ou, no pior dos casos, já morreu de morte “natural” ou foi e está a ser assassinada? Viveu muito e ainda vive nas nossas almas e espíritos? E, talvez a questão mais importante, queremos que a sociedade tradicional retorne a governar as nossas vidas?
O único pormenor que vos posso adiantar, para aguçar a vossa curiosidade pelo livro, é que, depois da acima contada zanga entre as comadres, a Thandi escreveria, numa carta que eu considero de reconciliação para ambas amigas, o seguinte:
“O nosso país pode ser uma nação, mas ainda somos de diferentes cores e tons e temos os nossos preconceitos estabelecidos por muitos anos do apartheid, mas eu realmente sinto que, apesar de não conseguirmos mudar o país, podemos mudar aqueles com quem entramos em contacto através das nossas amizades e daquilo que aprendemos uns com os outros…”.
Uma nota pessoal sobre o livro: fiquei surpreendido com a relativa leveza de espírito com que a autora trata das contradições agudas no seio de uma sociedade profundamente dividida em etno-racismo, classes e sexismo. Talvez o motivo que levou a autora a adoptar um estilo bem-humorado no tratamento de assuntos tão sérios e caros da sociedade sulafricana seja encontrado no que ela, por via desta obra, pretende denunciar: a leveza do espírito, a ironia, com que a classe mádia africana – neste livro representada pelas madams – tratam os assuntos sérios de uma nação em transformação.
É que nas elites da classe média se cruzam todas as raças: estão longe do sofrimento da classe dos pobres, embora o suficientemente perto por via da sua proveniência dos vários Sowetos e por via das suas empregadas ou “secretárias particulares. Estas conhecem as suas madames pelas entranhas e sabem o quão sofrida é a sua vida preenchida por aparências por conta do supérfluo (moda, fetichismo material, luxo e desprezo pelos pobres…).
Acho ser neste ponto onde encontramos a chave d’As Madames. Perante grandes divisões deste século, às quais Boaventura Santos em O Fim do Império Cognitivo classifica como “linhas abissais” do patriarcado (opressão da mulher), colonialismo (opressão racista) e capitalismo (desprezo pelos pobres), o livro propõe que não basta agir sobre a parte estrutural destes assuntos-por-resolver.
Efectivamente, segundo o livro, podemos mudar as coisas a partir daqueles “com quem entramos em contacto” seja na esfera privada, seja nas esferas públicas. Na dificuldade de termos que parecer, como nação e na esfera pública, anti-etnoracistas, de fingirmos que amamos os pobres ou dar a entender que abraçamos genuinamente as lutas de gênero, podemos começar por ser nós próprios nas pequenas coisas do dia-a-dia.
Na verdade, trata-se de um romance que desnuda as madames da classe média (e os seus homens também) que se cansam de levar uma vida cínica do politicamente correcto.
Vivemos em tempos de batalha entre, por um lado, o desejo do permanente recomeço do ser em nós mesmos e, por outro, a eterna tentação do parecer a que nos submetem o machismo tóxico, o colonialismo racista e o capitalismo aporófobo. E é este o dilema político e ético (ser ou parecer?) da classe média intelectual que a Zukiswa Wanner pretende evidenciar e denunciar com As Madames.
Agora um post scriptum: Normalmente, quando recebo um romance ou outro tipo de literatura dita africana, coloco-me três critérios e grelha de leitura. Na verdade, esta grelha justifica o interesse que a filosofia africana deve ter pela literatura africana enquanto fonte de conhecimento e de inspiração para utopias.
A grelha de leitura filosófica da literatura contempla o recurso (a) á ancestralidade, (b) á oralidade e (c) aos provérbios. O recurso à ancestralidade permite com que os autores “conversem” com os antepassados “mortos-vivos” (John Mbiti) que insistem em intervir nas nossas vidas, principalmente em momentos de angústia ou de insegurança ontológica como os chama Tempels em Filosofia Bantu. A integração da linguagem da oralidade na literatura (oraliteratura) vejo-a como sendo uma forma quase natural de fazer literatura no contexto da africanidade. E, finalmente, o recurso aos provérbios que retiram do contexto da oralidade e da eticidade comunitarista não somente distintivo como também necessário na afirmação da africanidade e que é muito aproveitado pela filosofia da sagacidade.
Estes ingredientes estão suficientemente presentes em romances como Things fall Apart ou livros como A Distante Proximidade de Almeida Cumbane.
Ora, apesar de ter iniciado a minha leitura d’As Madames de Zukiswa Wanner procurando na sua escrita estes pressupostos do que eu entendia como sendo para o escrever africano, não os encontrei directamente com tanta abundância esperada. E isso é um indicador de que estamos perante uma escrita que quer escapar da tentação antropológica, às vezes entediante, tentação esta que assaltou a nossa literatura jovem africana.