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Kwashala Blues ou a metáfora poética da morte

Por Alberto José Mathe[1]

Domingo é, para mim, um dia sagrado. Independentemente das circunstâncias, reservo o dia para passar mais tempo com a família e deliciar-me dos sons do jazz que me chegam de vários quadrantes do mundo. Quando eram seis da manhã recebi uma notícia do desaparecimento físico de um amigo, na vizinha África do Sul. Movido pela angústia do dia, decidi mudar o meu repertório musical para escutar o Blues e assim, chorar o meu amigo. Foi uma tarde do blues. Enquanto me deliciava de clássicos como Duke Ellington, Billie Holliday, Gary Coleman, Sam Myers, Muddy Waters, B. B. King, entre outros, fui me perguntando sobre o alcance e significado do Harlem Renaissance ou precisamente das profundezas melancólicas do ritmo do blues, das experiências dolorosas enfrentadas pelos afro-americanos que vieram a criar este estilo musical.

Este processo foi fundamental para encarar a dor que sentia e amparar-me na experiência colectiva dos povos africanos e suas diásporas. Pensar em quão dolorosa é a sensação da perda de alguém que amamos pode ser perturbador, mas também pode ser humanizador. De repente tocou o meu alarme, a recordar-me para ler o livro “Kwashala Blues”, do qual fui incumbido a difícil missão de apresentá-lo hoje. Quem vive no meio a tragédias não se pode abalar e deixar de cumprir com as missões que vai recebendo, porque “a vida é curta e precisa de ser vivida sem que nos fechemos em nossas histórias, experiências e sonhos” (Cacinda, 2023, p. 45). Então comecei a ler e a interrogar-me sobre o título do texto: por que Kwashala Blues? Será um livro que fala dos meus mestres favoritos ou que encontra no blues um motivo literário?

Tenho a impressão de estarmos perante um livro que sugere mais do que diálogos inter-artísticos entre a literatura e o blues. Ao ler este livro, fiquei com a mesma sensação de melancolia causada pelas letras e ritmos tristes do blues, que neste caso representam a morte “kwashala”. Neste Kwashala Blues, a morte e a melancolia são explorados de maneira visceral. É como se a melancolia do blues fosse tão intensa que a própria vida estivesse prestes a “morrer” em um sentido emocional. As progressões dos acordes lentos e solos de guitarra expressivos amplificam a sensação de angústia e desespero que os diversos textos interconectados exploram.

É possível sentir, juntamente com o narrador autodiegético, a intensidade da tristeza e da angústia causada pela descoberta assombrosa de que o pai morreu, em parte por culpa do filho que subestimou o valor afectivo da sua relação com o pai, substituindo-a por presentes:

O meu pai havia segredado aos seus que iria morrer e que se tinha apercebido da ferida da minha mágoa. Ficava cada vez mais triste quando recebia os meus presentes. Primeiro recebeu uma dúzia de cadeiras, porque eu queria pagar a que tinha partido; e não parei por aí, fui enviando outros bens, mas sem nunca ter estado presente.

- O teu pai queria apenas a ti e não os teus presentes – disse um dos meus tios. (Cacinda, 2023, pp. 16-17).

O lirismo emocional, a linguagem directa e a simplicidade com que se descrevem os eventos diegéticos engendra um discurso dramático e cria imagens poderosas que envolvem o seu leitor (call and response do blues) e permitem que este se reveja na trama e sinta as dores das personagens, de modo que se processa uma sincronia entre a melancolia que o blues pode transmitir com a morte emocional representada pelo Kwashala. Esta experiência emocional pode ser despertada pela morte do professor Sapato, um homem exemplar, culto, dedicado a grandes causas e à sua família, mas que encontrou a morte no fatídico dia em que flagrou a esposa com outro homem na sua cama, por sinal sobrinho da esposa que morava com o casal.

Assim, Sapato olhou para o homem. Era o Paulo, primo da esposa. O mesmo que havia chegado há dois anos à sua casa a pedir acolhimento, para poder realizar o seu sonho de se formar em Mecânica Industrial.

(...)

Paralisado, Paulo e Muarema vestiram-se com rapidez. Viu os dois abandonarem o quarto como dois bichos-do-mato. Às doze horas e meia, o filho chegou da escola e encontrou o corpo do pai já sem vida, no chão da sala. Sob a mesa de centro um bilhete insinuava: aos homens não se pode confiar, até sempre! Assinado: Carlos Sapato. (Cacinda, 2023, p. 27).

Este Kwashala Blues é uma metáfora evocativa para a intensidade da tristeza e da angústia causada pelas mortes prematuras, em diversas situações, e em condições estranhas, mas que são recorrentes no quotidiano moçambicano e podemos nos identificar com elas, independentemente das causas associadas. É como se o fantasma da morte prematura assombrasse os personagens e, concomitantemente, os leitores, levando estes a questionarem o seu lugar, as suas origens, as suas memórias. Ah, a memória, quer do narrador, quer dos outros personagens, apesar de dolorosa e enraizada na experiência colectiva da perda parece o antídoto que pode nos curar desta condição de afro-pessimismo.

Nesse sentido, é a memória que acalenta o narrador autodiegético, quando é atacado por um grupo de bandidos no bairro de Namicopo e colocam-no uma faca no pescoço. Esse flashback de gente que o narrador magoou, funciona como uma expiação da alma que está em apuros, sem rumo e sem leme.

O projecto de escrita de memórias sustenta-se pela escrita compromissada, socialmente engajada que se processa como uma sociologia dos costumes ou uma antropologia do cotidiano. Todavia, este compromisso social, que pode ser bem discutido no âmbito do campo literário moçambicano, ou precisamente, em relação às fronteiras da literatura, acaba por despertar um outro debate: afinal, em que género se enquadra este Kwashala Blues?

Ora, se o campo literário pode ser definido pelas suas dimensões social, histórica e estética, é nesta última que reside a maior dificuldade de responder à questão acima levantada. Ora vejamos, a dimensão estética da literatura apela para um sistema e o seu respectivo código, cuja linguagem literária permite materializar as suas qualidades estéticas. Neste sentido, o discurso literário, com todos os elementos que o integram, funciona como uma antecâmara que orienta o leitor do texto.

Ao optar por uma linguagem simples, objectiva e directa que facilmente pode captar e despertar as emoções do leitor, operando desvios que estão além da linguagem literária. Veja-se que o texto busca ressignificar o bairro de Namicopo, que se ergue lentamente como personagem viva, com suas memórias e histórias. As referências posteriores a este bairro e ao movimento Made in Namicopo podem inserir-se nesse esforço de deslocar a metáfora da morte para o acto de resistência, de um bairro que teima em cair no esquecimento, apesar de todos os dramas que por lá se passam.

Os dramas do cotidiano são explorados em outros capítulos do livro, abandonando a perspetiva inicial sobre a memória, às vezes retomando-a de forma a colectivizar as experiências e problematizar o drama humano.

É um livro para ler devagar. Desfrutar dos sons, emoções e imagens telúricas, melancólicas, numa linguagem simples, aparentemente improvisada, crua e autêntica como no blues. É um texto que desafia a crítica literária e espero que suscite debates nas várias áreas do saber.


[1] Crítico cultural e Professor de Literaturas Africanas na Universidade Save.

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